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Quinta-feira, 06 de junho de 2024 - Por Luiz Marques
Desastre planetário, negacionismo e revolta política
A crise planetária em curso é evidenciada por desastres ambientais, cuja negação é alimentada por desinformação e autoengano.
Imagem: Professor aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
Professor aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
Luiz Marques é Professor aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ele foi palestrante na 16ª edição do Café Cocen, com o tema "Antropoceno: causas e efeitos do colapso ambiental"
A evidência do desastre planetário em curso e a negação dessa evidência, ou ao menos a recusa em admiti-la plenamente, são os dois traços definidores do nosso tempo. De onde a posição central em nossos dias do problema do negacionismo, fomentado pela desinformação e pelo autoengano. Negacionismo é um termo polissêmico, que apresenta diversas facetas e gradações, desde a mais tosca e pueril, típica da extrema-direita, à mais douta e universitária, camuflada na ficção do "crescimento sustentável". Ao contrário da acepção original do termo negacionismo, que tentava relativizar ou negar a existência dos campos de extermínio criados pelo Terceiro Reich, o negacionismo contemporâneo tem por foco descreditar o consenso científico. Ele deve ser definido como a recusa cega e irracional em aceitar os alertas científicos sobre as causas das catástrofes locais e regionais já observadas cotidianamente, sendo que tal recusa implica escolher a própria ruína. Essa escolha é motivada em geral por interesse econômico, mas também pela ideologia do desenvolvimentismo, por um investimento na própria ignorância, por fanatismo religioso e, mais frequentemente, por um misto de todas essas motivações. No quadro geral desse desastre planetário, a emergência climática e a aniquilação da biodiversidade são as crises mais sistêmicas. O clima é a condição de possibilidade das florestas, e as florestas são, por sua vez, a condição de possibilidade da estabilidade do clima. Sem um clima minimamente estável e sem florestas, não há agricultura, estabilidade dos ciclos hidrológicos e, sobretudo, possibilidade de regulação térmica dos organismos. A humanidade e as demais espécies não podem sobreviver fora de seu nicho climático. Trata-se de uma impossibilidade biológica, indiferente às pretensas balas de prata da tecnologia. Mas há muito mais a ser enfrentado do que a emergência climática e a perda de biodiversidade. O adensamento (intensificação e maior frequência) de inúmeras crises sistêmicas, agindo em sinergia e reforçando-se reciprocamente, indicam de modo cada vez mais inequívoco a iminência de um desastre coletivo. Esbocemos um quadro geral das mais importantes dessas crises:
1. aumento contínuo do consumo de energia (sobretudo fóssil, mas não apenas); 2. aumento igualmente contínuo da mineração, com inaceitáveis impactos ambientais; 3. desestabilização do sistema climático, sobretudo pela queima de combustíveis fósseis; 4. desregulação dos ciclos hidrológicos (secas e inundações) como efeito dessa desestabilização; 5. elevação do nível do mar, afetando infraestrutura, recursos hídricos e ecossistemas costeiros; 6. substituição da agricultura pelo agronegócio no âmbito da globalização do sistema alimentar; 7. destruição e degradação das florestas e demais mantas vegetais naturais pelo agronegócio; 8. antropização, artificialização e degradação biológica dos solos, sobretudo pelo agronegócio; 9. maior risco de epidemias e pandemias com maior extensão geográfica de seus vetores; 10. facilitação de zoonoses pela criação intensiva de animais para a alimentação humana; 11. aumento explosivo da geração de resíduos, inclusive na estratosfera; 12. intoxicação químico-industrial da biosfera, com adoecimento crescente dos organismos; 13. diminuição acentuada da fertilidade humana e de outras espécies; 14. sobrepesca e destruição generalizada da vida marítima; 15. aumento das espécies invasoras em escala global; 16. empobrecimento genético das espécies selecionadas pelo agronegócio; 17. crescente resistência bacteriana ao uso de antibióticos em humanos e em outros animais; 18. aniquilação da biodiversidade decorrente dos 16 fatores precedentes; 19. riscos crescentes de novas tecnologias (geoengenharia, nanotecnologia, nuclear etc.); 20. opacidade e transferência crescente de poder decisório aos algoritmos de IA; 21. emprego desses algoritmos para a substituição e a precarização do trabalho; 22. manipulação de comportamentos por esses algoritmos, exacerbando o individualismo; 23. emprego desses algoritmos para fomentar o descrédito à ciência e à democracia; 24. surtos de irracionalismo e, em particular, do fanatismo religioso; 25. aumento das desigualdades e da concentração de poder nas mãos de oligarquias econômicas; 26. financeirização extrema da esfera econômica; 27. preponderância da economia como critério de avaliação do sucesso das sociedades; 28. redução dos Estados à função de facilitadores e gestores das demandas do mercado; 29. recrudescimento do patriarcalismo, do racismo e de ideologias nacionalistas e nazifascistas; 30. proliferação de guerras e de conflitos armados, decorrente dos 29 fatores precedentes.
Embora de tipos e naturezas muito diversas, essas crises representam facetas interligadas de uma única crise planetária da civilização a que se dá o nome de capitalismo globalizado (aí incluídas, obviamente, a Rússia e a China). Essa crise planetária pode ser melhor caracterizada como a crise de nossa civilização termo-fóssil, uma civilização baseada na queima de carbono, na destruição da biosfera, na acumulação e na concentração de capital por megacorporações, na dissociação homem-natureza, na ilusão da potenciação energética ilimitada e na ideologia de que não há outro mundo possível. No quadro geral desse elenco de crises, a emergência climática, a aniquilação da biodiversidade, a intoxicação planetária e as guerras (com risco agora extremo de uma guerra nuclear entre a Rússia e a OTAN) têm potencial, mesmo consideradas isoladamente, para ameaçar existencialmente as civilizações humanas e a sobrevivência de milhões de espécies, a nossa incluída. Mas elas estão associadas entre si e agem em sinergia com as demais crises acima enunciadas, de modo que o caos irreversível que elas estão em vias de engendrar torna-se uma quase certeza. Ocorre que há um bloqueio cognitivo, ideológico, emocional e psicológico das sociedades em aceitar e compreender essa quase certeza. E esse bloqueio, vale dizer, o negacionismo contemporâneo em todas as suas facetas e gradações, é, ele próprio, o fator decisivo na passagem da quase certeza para a certeza. O negacionismo contemporâneo torna-se, assim, o fator decisivo a nos precipitar nesse caos. Ele é o maior responsável pela baixa reatividade das sociedades face à ruína que já começa a se abater sobre a vida na Terra. Se não houver uma revolta política das sociedades à altura da extrema gravidade dessa poliédrica crise planetária, a condenação ao pior num futuro cada vez mais próximo é inapelável. Clique aqui para ver a matéria completa (Jornal da Unicamp)
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