"A invasão de garimpeiros de agora é muito semelhante à invasão do final dos anos 80 e começo dos 90", diz a ex-presidente da Funai e pesquisadora do Nepo, Marta Maria Azevedo
Desnutrição, malária, pneumonia e verminoses, além da violência constante de garimpeiros ilegais ocasionaram uma situação de crise sanitária e humanitária na maior terra indígena do Brasil, onde vivem cerca de 28 mil Yanomami. A desnutrição atinge mais de 50% das crianças, e há um alto número de casos de malária, relacionados à expansão do garimpo. Constatando a gravidade da situação, o governo federal decretou emergência de saúde e convocou voluntários para atuarem no local.
A Terra Indígena Yanomami tem cerca de 9 milhões de hectares e está localizada nos estados do Amazonas e de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Vivem nela oito povos, incluindo os Yanomami. Com o avanço de atividades ilegais na região, estima-se que 20 mil garimpeiros também estão no território. Indígenas denunciam a contaminação dos rios devido ao garimpo e os abusos sofridos pelas mulheres e crianças.
A professora do Departamento de Antropologia Artionka Capiberibe: mobilização pelos direitos indígenas foi se fragilizando
Conforme a professora do Departamento de Antropologia da Unicamp Artionka Capiberibe, o que está na raiz dos problemas enfrentados pelos Yanomami é a terra. "Eles têm uma terra indígena demarcada e homologada, mas ela não é uma terra protegida", diz. Nos anos 1990, relembra, houve a demarcação de terra após invasão de garimpeiros, que foi contida por uma pressão internacional.
No entanto, avalia a professora, a partir da "corrosão do sistema político brasileiro", especialmente após 2014, a mobilização pelos direitos indígenas foi se fragilizando, agravada pela composição do Congresso Nacional, no qual predominam os interesses ruralistas e da mineração. "Tem dois movimentos: começa lá atrás, com uma fragilização do cuidado das populações indígenas, e isso é geral, com a crise política no país, e quando se elege o inimigo dos povos indígenas, que é o Jair Bolsonaro, começa o genocídio de fato."
Durante o governo Bolsonaro, com o desmonte de órgãos de proteção ambiental e dos direitos indígenas, o garimpo avançou ainda mais. Em 2021, houve a maior expansão da atividade dos últimos 36 anos. Foram 15 mil hectares garimpados, sendo 1.556 na TI Yanomami.
Governo ignorou pedidos de ajuda
É sintomático, para Capiberibe, que a primeira morte por Covid-19 de um indígena tenha sido de um Yanomami. "É sintomático do que estava acontecendo lá, porque ele foi contaminado justamente por ter contato com não indígenas e porque há invasões, que estavam sendo denunciadas recorrentemente."
A falta de assistência e os ataques armados pelos garimpeiros, conforme apurado pelo Intercept, levou os Yanomami a enviarem 21 pedidos de ajuda ao governo Bolsonaro, que os ignorou. À Organização das Nações Unidas (ONU), o ex-presidente informou que os indígenas estavam sendo atendidos e que haveria uma operação para garantir alimentos e saúde.
Paulo Abati, médico infectologista, especialista em saúde indígena e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, esteve no território Yanomami em 2022 em ação da ONG Expedicionários da Saúde. Ele conta que a situação grave da população em termos de saúde não vem de agora, mas piorou nos últimos anos. "Além da degradação ambiental promovida pelo garimpo, que acaba impedindo os modos de vida tradicionais e impactando na saúde do povo, houve, nos últimos anos, uma baixa importante nas ofertas de acesso à saúde."
Dentre os problemas citados, ele indica que houve a redução do programa Mais Médicos, insuficiência e má gestão de recursos. "Tivemos falta de medicamentos e de alimentos, fatores que contribuíram para este contexto que estamos vendo hoje. Os dados epidemiológicos que guiam as ações em saúde ficaram ocultos nos últimos anos, dificultando o conhecimento da sociedade, das instituições e do poder público (que tem o dever constitucional de executar as ações em saúde) e que agora estão sendo revelados."
Para o professor, é preciso "coordenação, no sentido de melhorar uma ação integrada entre diversos atores sociais e instituições, para colocar fim no garimpo naquela região e dar suporte de saúde àquele povo, para que não tenhamos um genocídio."
Estado de emergência
Em visita a Roraima neste sábado (21), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou medidas para contornar a situação de calamidade, que incluem o envio imediato de alimentos e suplementos. O Ministério da Saúde decretou o estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.
Em Roraima, o presidente Lula esteve acompanhado da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara; do ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias; da ministra da Saúde, Nísia Trindade; do ministro da Justiça e Segurança, Flávio Dino; do ministro da Defesa, José Múcio; do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida; e da futura presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana.
Um dia antes de ir à TI Yanomami, Lula também anunciou a criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária. Já nesta segunda (23), foi enviada uma equipe da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) e uma equipe multiprofissional para operar um Hospital de Campanha. Além disso, o ministro da Justiça, Flávio Dino, abriu um inquérito para apurar possíveis crimes de genocídio e de danos ambientais.
Recrutamento de voluntários
Diante da situação, o governo federal está recrutando voluntários da área de saúde para atuar junto aos Yanomami. O cadastro pode ser feito através
deste link. A Unicamp também tem a intenção de reunir voluntários para atuarem no local.
Matéria originalmente publicada no Portal da Unicamp